Jacques Gruman
Naquela
sexta-feira, Mohammed Bouazizi fez tudo igual. Saiu pela manhã com seu
carrinho de frutas e legumes, sonhando com o dia em que poderia comprar
uma caminhonete. Mesmo uma usada serviria. Sobrava muito pouco no fim do
mês, a família precisava daquele sustento precário. Fiscais da
prefeitura da pequena Sid Bouzid se aproximaram de Bouazizi e tentaram,
mais uma vez, extorquir uns cobres. Rechaçados, humilharam o vendedor e
confiscaram o carrinho. Desesperado, Mohammed foi até a porta da
prefeitura e tentou, em vão, falar com qualquer autoridade. A vida
parece escoar pelo bueiro, não dá para aguentar mais. Ateia fogo ao
próprio corpo e morre menos de um mês depois.
Seu gesto extremo
foi a fagulha que incendiou o rio subterrâneo de combustível que
percorria a Tunísia. Era o dia 17 de dezembro de 2010 e os tunisinos
inauguraram a chamada Primavera Árabe. A imolação de um pobre catalisou a
erupção de demandas reprimidas por uma ditadura que já durava mais de
duas décadas. Não demorou e o ditador fugiu do país, varrido por um
impetuoso movimento de massas. Nenhum manual podia explicar aqueles
acontecimentos.
Temos
uma tendência natural ao controle. Ninguém gosta de viver inseguro,
ignorante de arredores misteriosos. Daí um desejo irresistível de
rotular, classificar, engessar. É o preâmbulo de qualquer
conservadorismo. Por essa ótica, é compreensível o atordoamento geral
com as manifestações de rua que se espalharam rapidamente pelo Brasil.
Tal
como na Tunísia, começaram com um acontecimento aparentemente trivial: o
protesto contra o aumento das tarifas do transporte público. Afinal de
contas, todos os anos, sem qualquer melhoria aparente na qualidade do
serviço prestado à população, os empresários ganham de bandeja reajustes
nas tarifas. Com a chancela dos governos municipais, não raro
beneficiados por generosas doações em época eleitoral, os empresários
dos transportes nunca deram a mínima para os anseios do povo. Por que
foi diferente agora ? Acho insuficiente atribuir à violenta repressão
policial em São Paulo a enorme reação em cadeia que veio em seguida.
Mais uma vez: truculência policial é feijão com arroz no cotidiano das
comunidades pobres e nem por isso resultou em insurreição. É preciso
conviver com a dúvida, é saudável. Por enquanto, e acredito que por um
bom tempo, the answer is blowing in the wind.
REDES SOCIAIS
A
mobilização espontânea, puxada por redes sociais, tem um componente
catártico. Por difusas razões, multidões resolveramespernear, e no cesto
cabe, literalmente, de tudo. O alívio de soltar o grito, no entanto, é
apenas um estágio primitivo da política. Sem organizar uma estratégia,
sem escolher prioridades, sem compreender além da superfície visível o
que produz desigualdade e insatisfação, sem, sobretudo,
construir/fortalecer ferramentas políticas de luta, cai-se, dobrando a
esquina, no vazio. Compreendo e apoio o berro, mas, sozinho, ele tem
fôlego curto. Na Argentina, no auge da crise do início deste século,
manifestantes gritavam Que se vayan todos, que no quede un solo ! Lá como cá, o povo percebia a política como atividade criminosa, coisa de bandidos. Entro neste vespeiro um pouco adiante.
Antes
de prosseguir, registro uma dessas impiedosas ironias da História. No
final de 2012, com o final da primeira fase do julgamento do Mensalão,
líderes do PT, totalmente (tolamente ?) desligados da realidade, falaram
num “retorno do partido às ruas”. Gilberto Carvalho, da
Secretaria-Geral da Presidência da República, convocou a militância para
defender Lula e o PT. Estava convencido de que “o povo vai se mobilizar
em defesa do nosso Lula, do nosso projeto”. José Dirceu, condenado por
formação de quadrilha e corrupção ativa, disse ter sugerido ao partido
que “fizéssemos uma manifestação em fevereiro, colocando 200 mil pessoas
na rua”. O resultado está aí. Não sou da área psi, mas deve existir
alguma patologia caracterizada pelo total desligamento da realidade.
Esses companheiros deviam procurar ajuda especializada.
Se
o retorno às ruas significar a revalorização da política, os atuais
acontecimentos serão tremendamente positivos. Que não se esperem, porém,
milagres. A massa está profundamente desapontada com o jogo
político-partidário. A sensação de desamparo e frustração foi reforçada
nos últimos anos, quando um partido que chegou ao poder prometendo ser
diferente rejuvenesceu o que há de pior e mais reacionário na República.
A “flexibilidade tática”, senha para “governabilidade” a qualquer
custo, lustrou alianças vergonhosas com Paulo Maluf, Renan Calheiros,
José e Roseana Sarney, Guilherme Afif Domingos, Marcelo Crivella e
outros menos votados. Relações incestuosas, que alimentam no imaginário
popular a ideia de que todos são protagonistas de um filme B, estrelado
por corruptos, cínicos e cafajestes. Alguma surpresa, então, com a
hostilidade contra militantes da esquerda que aderem às manifestações ?
Com a despolitização do espaço público, alegremente estimulado pelo PT e
seus aliados, como pretender que o povo saiba separar o joio do trigo ?
Queimar bandeiras e agredir militantes não tem outro nome: fascismo.
Há, no entanto, que compreender, com restrições, o estado de ânimo de
muitos que perderam a esperança no arremedo de sistema partidário
pós-ditadura.
COOPTAÇÃO
A
cooptação de organizações populares pelo governo federal é uma tragédia
que mostra agora, com todas as tonalidades, enormes prejuízos para o
processo político. Onde estão os sindicatos dos médicos, professores,
rodoviários, metroviários e ferroviários, cujas categorias profissionais
estão sendo defendidas nas ruas ? Onde está a CUT, que poderia
articular uma aproximação com a massa revoltada ? Onde está a UNE, de
gloriosa trajetória no passado e hoje instrumentalizada pelo PCdoB ?
Essa seria a hora de dar musculatura às mobilizações que varrem o país,
unindo reivindicações e potencializando capacidade organizativa.
A
postura do PT e do governo federal está muito bem exposta numa frase de
José Eduardo Dutra, ex-presidente do partido: “Vamos combinar o
seguinte: a oposição pode ficar com a manifestação dos estádios de
futebol e o PT fica com a das urnas em 2014”. Mais claro, impossível. O
líder petista ironiza a insatisfação popular, certo de que a televisão e
o “projeto” do partido garantem a reeleição de Dilma. Nisso se
transformou um partido que teve origem em setores progressistas.
Junta-se a Gilberto Carvalho e José Dirceu no surto de triunfalismo
canhestro que está sendo desconstruído pelas ruas. O núcleo duro do PT
apostou, claramente, num esvaziamento natural da revolta. Quando os 200
mil delirados pelo José Dirceu se transformaram em mais de 1 milhão de
incontrolados, acendeu-se a luz amarela no Planalto. E veio, com péssimo
timing e pior conteúdo, o discurso da presidente em cadeia nacional.
DILMA NA TV
Ouvimos
uma burocrata enfezada, que não tolera o contraditório. Falou de “muita
coisa que o Brasil ainda não conseguiu realizar por causa de limitações
políticas e econômicas”. Que limitações seriam essas ? Por que não abre
o jogo e esclarece a população, politizando o que é técnico só na
aparência, construindo uma ponte pedagógica que vá além do horizonte
miúdo das disputas eleitorais ? Por que não denuncia as verdadeiras
causas que tornam os sistemas educacional e de saúde no Brasil
calamidades crônicas ? Que concubinato político garante a continuidade
das agressões diárias ao povo brasileiro ? Em outro momento, tergiversou
sobre a origem dos recursos para a construção de estádios para a Copa
do Mundo. Disse que os recursos públicos são financiamentos que terão
que ser devolvidos aos cofres públicos.
Esqueceu
de dizer que os financiamentos do BNDES são subsidiados, com juros
camaradas, e os contratos de privatização dos estádios garantem lucros
leoninos. No fundo, assistimos a mais um processo de concentração de
riqueza. Fechando o caixão, digo, o discurso, a senhora presidente
lembrou que “minha geração lutou muito para que a voz das ruas fosse
ouvida”. Amnésia conveniente. A geração a que se refere Dilma é a que
lutou contra a ditadura. Seu projeto era construir o socialismo, palavra
banida faz tempo do léxico petista. Espremendo a fruta, sobra apenas
uma declaração de boas intenções. Formar grupos de trabalho, dizia
Getúlio, é uma forma de não resolver problemas. O prédio está pegando
fogo e os bombeiros convocam para uma aula sobre a estrutura molecular
da água.
O
que virá ? Do governo federal, há poucas dúvidas. Nenhum dos problemas
apontados pelos manifestantes é novidade. Abrir-se-á o cofre,
especialmente no ano que vem, e dele sairão bondades paliativas para
tentar garantir a reeleição de Dilma. Já das ruas … Sem lideranças ou
alianças com setores organizados, é possível imaginar um refluxo por
esgotamento. A frustração voltaria a acumular-se e poderia ser
descarregada, por exemplo, em Tiriricas, Bebetos e Popós. Não é
impossível que demandas não atendidas sejam capitalizadas por grupos de
direita. A chegada de movimentos sociais e populares organizados poderia
dar um salto de qualidade às revoltas, ao mesmo tempo em que ajudaria a
conter avanços da direita. À esquerda, e aí incluo os partidos, cabe
decifrar o enigma que os novos acontecimentos propõem. Sem cair na
tentação de procurar respostas prontas em velhos manuais.( Tribuna da Imprensa )
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