Silvero Pereira subiu nos saltos de Gisele Almodóvar antes de circular pela noite cearense. Na pele dela, percorria boates, saunas e ruas de prostituição com um convite às outras meninas: "Deixa eu pagar uma cerveja para você".
Dividindo as geladas, ouviu histórias de arrepiar. O abandono pela família, exploração sexual, demissões, evasão escolar, violência: as vidas de travestis e transexuais com que cruzou ganham nome, escritos com lápis de olho sobre a pele morena de Gisele no monólogo "BR-Trans", dirigido por Jezebel de Carli.
Na peça, em cartaz até 18 de outubro no Sesc Pompeia, ele mistura a narrativa de quem, desde 2012, pesquisa a "cartografia artístico e social do universo trans no Brasil" com a interpretação de algumas dessas personagens. O projeto itinerante volta a São Paulo pela segunda vez, após curta temporada em 2014, e deve seguir rodando o país até meados de 2016. Surgiu da observação das meninas com que Silvero convivia, na periferia de Fortaleza -de noite, atraíam o desejo dos homens; de dia, eram ora escondidas, ora discriminadas. Quando não assassinadas.
Alguns desses homicídios aparecem em uma projeção no fundo do cenário, que tenta reproduzir a atmosfera de uma quitinete, onde moravam a maioria das meninas com que Gisele conversou. Uma contagem de ódio que não para correr: nas Américas, o Brasil é o país que mais registrou casos de mortes violentas de travestis e transexuais entre 2008 e 2014, segundo relatório da ONG internacional Transrespect versus Transphobia.
"Nem eu sei que parte do meu corpo é Silvero e que parte é Gisele", confessa, Silvero, no início do espetáculo. Gisele é a personagem que ele criou para superar a resistência das garotas e acessar o universo trans. A aproximação foi além das confidências: suas unhas feitas e esmaltadas, a maquiagem e os trajes femininos lhe ensinaram o que é o "preconceito do olhar".
"No dia em que saí de Gisele com elas, fui para o bar, pedi cerveja e quis ir para o banheiro feminino, notei uma questão muito importante para a pesquisa, para que eu entendesse o que elas vivem. É quando de fato a gente vê a olho grosso o preconceito", conta o ator, à meia-luz do teatro, os cabelos lisos ajeitados em um coque improvisado, após um dos últimos ensaios antes da estreia em São Paulo.
"As pessoas tratam mal, existe uma violência do contato, do não querer se aproximar. Existe uma violência sutil. [Com esse método] consegui absorver não só as histórias delas, mas o entorno que elas viviam."A experiência, além das mudanças no corpo, deixou marcas em seu entendimento sobre o ódio contra o transexual, "homem que negou a sua masculinidade" o que, por si só, "já é um crime para a heteronormatividade".
"Nossa sociedade é hipócrita, finge liberdade. Ela não compreende o que de fato produz. Se a travesti foi para a marginalidade, se virou bandida, é porque a tríade que baseia a sociedade é a religião, a escola e a família. E é justamente nesses três lugares em que ela não é aceita. O ódio vem daí, da não aceitação da sociedade de ter produzido isso", afirma Silvero.
Parte do projeto "BR-Trans" aconteceu no Presídio Central de Porto Alegre, um dos primeiros do país a reservar uma ala apenas para transexuais e travestis. Na capital gaúcha, Silvero conheceu Babi, que se apresentava em boates. É a história dela, não à toa, que encerra o espetáculo —"uma possibilidade política, nas palavras da diretora, Jezebel de Carli.
A gaúcha realizou, certa vez, o sonho de ser atriz cantando "Geni e o Zepelim", de Chico Buarque, em um teatro de Porto Alegre. Em cena, a letra ganha uma nova versão: Geni dá lugar a Babi. E a Giseles, Lauritas, e a todas as meninas resgatadas por Silvero com "BR-Trans".
(DOL com informações da Folhapress)
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