Michel LaubO Globo
Há vários modos de tratar o legado de Amós Oz . O mais frequente subordina os feitos artísticos do escritor israelense à sua militância pela paz no Oriente Médio. Nesse sentido, a morte anunciada na última sexta-feira, aos 79 anos, de câncer, é uma nota triste pelo que representa em termos políticos. Oz desaparece no momento em que discursos como o seu, forjados nas crenças universalistas do humanismo do pós-guerra, padecem diante de um mundo tomado por convicções fanáticas e tribalização.
Mas existe um legado que vai além das grandes batalhas de ideias. Oz deixa uma obra importante na rica tradição da literatura judaica do século XX, em particular da segunda metade.
SIMBOLOGIA – Na conhecida distinção entre autores que celebram a simbologia dessa tradição (Isaac Bashevis Singer, Moacyr Scliar) e os que se debatem contra ela (Philip Roth, Samuel Rawet), Oz começou a escrever na época e no lugar onde já era possível escapar da dicotomia — de resto um tanto imprecisa, inclusive nos nomes citados — de modo original.
A partir da fundação de Israel, em 1948, os elementos que fizeram a glória da ficção judaica mais característica — a aflição existencial, o senso de tragédia e comédia nascido dos caprichos da História — ganharam um cenário novo, distante das intermitências do exílio, cujo presente vibrante e contraditório podia inverter narrativas habituais de deslocamento e perseguição.
Como A.B. Yehoshua, David Grossman e outros, Oz descreveu a vida privada nesse país de extremos, onde há tecnologia de ponta e misticismo retrógrado, instituições políticas tolerantes e violência estatal discriminatória, um misto de estabilidade e instabilidade garantidas pelo grande poder militar e o pequeno poder do terrorismo.
GRANDES OBRAS – Para tanto, ele tratou de fazer o que bons escritores fazem: partir do individual para o coletivo, do local para o universal. De joias minimalistas como “Pantera no porão” (sobre a infância na Palestina ocupada por ingleses) e “Não diga noite” (sobre o tédio conjugal numa pequena cidade do deserto) a triunfos em tom maior como “A caixa preta” (romance epistolar de um divórcio ruinoso) e “De amor e trevas” (autobiografia pautada pela figura trágica de sua mãe), seus livros jamais são pregações generalistas de como o mundo deveria ser.
Pelo contrário, o que se vê neles é um registro próximo — cheio de paixão, sabor, humor — de como as coisas mais provavelmente são. Difícil sair dessas leituras com a mesma sensibilidade que tínhamos ao entrar. O que não deixa de ser uma vitória política: se o objetivo de qualquer militância é transformar a realidade, nem que seja no modesto nível pessoal, foi com as armas da ficção que Amós Oz deixou sua marca mais efetiva.
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