Os arreganhos golpistas de Bolsonaro, de membros de sua família, de alguns de seus ministros e até de figuras a quem cabe o papel de guardiãs das instituições democráticas, como é o caso do procurador-geral da República, Augusto Aras, vêm tornando o ambiente institucional cada vez mais irrespirável. Essas manifestações estão se naturalizando a ponto de causarem apenas uma leve reação. Aí a coisa fica por isso mesmo, ninguém leva a sério e segue o baile.
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Até que uma nova declaração imbecil do capitão-presidente ocupe o espaço nas manchetes e tudo continua como dantes no quartel de Abrantes. Essa sensação de “isso é assim mesmo, bobagem, liga não” é o que mais preocupa. Porque quando os sinais já não são mais percebidos é justamente quando está bom para passar a boiada, como recomenda aquele ministro.
No mundo dos adultos, fadas não existem
Tic-tac, tic-tac. O início do fim.
Quarta-feira da semana passada, uma declaração de Augusto Aras juntou-se às dezenas de manifestações aberta e rasgadamente golpistas de membros do atual governo e dos parentes de sangue do presidente desde a posse. Pegou tão mal e causou tanto mal-estar que, além de membros do Conselho Superior do Ministério Público Federal (um órgão presidido por Aras, lembre-se), integrantes do Supremo Tribunal Federal (STF) vieram a público condenar as invectivas de Aras. E o que foi que ele declarou para gerar tanta celeuma?
Em primeiro lugar, Aras reconheceu o crescimento da pressão pelo impeachment de Bolsonaro – que já conta com 62 pedidos neste sentido encaminhados à Mesa da Câmara. E jogou no colo do Congresso a análise de crimes de responsabilidade cometidos por “agentes políticos da cúpula dos poderes da República”, como se ele próprio, em razão do cargo que ocupa, não tivesse nada a ver com isso.
Dessa forma, o procurador-geral mais uma vez comportou-se como procurador... de Bolsonaro, e não da República. Ele jogou lenha na fogueira ao afirmar que o estado de calamidade decretado no país por conta da covid-19 é “a antessala do estado de defesa”, medida que daria superpoderes ao Presidente da República. Os subprocuradores do Conselho Superior do Ministério Público soltaram imediatamente uma nota na qual afirmam que Aras, que é o chefe deles, na condição de procurador, precisa cumprir seu papel de defesa da ordem jurídica, do regime democrático e de titular das persecução penal, devendo adotar as necessárias medidas investigativas a seu cargo.
Em outras palavras: deixe de ser vassalo de Bolsonaro, cumpra seu papel institucional de procurador da República, inclusive promovendo investigações contra o capitão-presidente, se for o caso, e não empurrando tal função ao Congresso. Até porque a Procuradoria da República existe para isso. Se não tem peito para bancar uma investigação contra integrantes de qualquer poder, principalmente do Executivo, então que peça o boné e vá embora.
Bolsonaro, um golpista contumaz
Ao mencionar o “estado de defesa”, Aras acendeu uma luz vermelha. Pois acenou perigosamente para a aprovação de um ato extremado do presidente da República. Mais forte do que estado de defesa só a medida ainda mais extrema do estado de sítio. Vera Chemim, especialista em direito constitucional, considerou a nota como “infeliz”, e foi à raiz da questão ao lembrar que é preciso que a paz esteja seriamente ameaçada para a decretação do estado de defesa.
Não consta que haja qualquer risco institucional que justifique um ato de tamanha gravidade. Ou melhor, se há esse risco, ele vem justamente do próprio presidente Bolsonaro, nas repetidas e reafirmadas manifestações golpistas que faz, apoia ou das quais participa, como ocorreu nos movimentos em favor do fechamento do STF e do Congresso Nacional, onde inclusive discursou aos participantes. E das fervorosas manifestações saudosistas de apoio ao golpe de 1964 com elogios à tortura, aos torturadores e aos responsáveis pelas 400 mortes de opositores ao regime militar.
A ameaça “sutil” do procurador-geral mereceu um sopapo do ministro Marco Aurélio, do Supremo, que identificou no ato a suspeita de estar ocorrendo “um movimento antidemocrático”, possibilidade que o assustou e o deixou perplexo, conforme suas próprias palavras. Marco Aurélio lembrou que “onde há fumaça há fogo”, recomendando, na contramão da naturalização dessas ameaças, que é preciso estar atentos e “implementar resistência democrática republicana a qualquer ótica que discrepe da democracia”. Com a pulga do tamanho de um jabuti atrás da orelha, o ministro afirmou, sem sutileza: “Nada surge sem uma causa”.
Exagero, alarmismo ou simples realismo?
Toda vez que alguém, como é o caso deste articulista, adverte, dentro do seu limitado espaço de influência, para o risco de ruptura institucional a partir de atos e palavras dos integrantes dos mais altos escalões da República ou de familiares do presidente, imediatamente surgem críticas falando de exagero e de alarmismo. Mas, o que dizer de um presidente da República que insiste no alinhamento com Donald Trump a ponto de, tal como ele, e sem provas como ele, por em dúvida o resultado da eleição americana e avisar que se não for adotado o voto impresso por aqui a coisa poderá ser até pior do que a invasão do Capitólio? E o que dizer do Chanceler Ernesto Araújo, que isolou o Brasil do mundo e passou a borracha num dos projetos diplomáticos mais bem elaborados ao longo da história - o do nosso Itamaraty -, a ponto de afirmar vergonhosamente que não se incomoda nem um pouco se o Brasil se transformar num pária no mundo? Que diabo de chanceler é esse que trabalha contra seu próprio país?
Bolsonaro não entregará pacificamente o governo
“Estado de defesa”, para quem não está habituado às expressões da Constituição Federal, é um recurso extremo, pura exceção ao estado de direito. Antessala de uma ditadura. Ou isso é grave ou perdemos a capacidade de nos indignar e de perceber, como Marco Aurélio percebeu, que, se há fumaça, há fogo. O projeto de ditador que ocupa a presidência da República só precisa das condições para dar o bote. Já passamos por dois golpes, um civil e outro, militar. Ainda outro dia Trump tentou um desses em plena democracia americana. Por aqui, Bolsonaro só não tentou ainda uma ampliação ilegal e irrestrita de seus poderes porque não tem certeza do apoio das forças armadas, a quem corteja dia sim e outro também. Forças Armadas, em qualquer país democrático, são uma instituição de Estado, e não de governo. Se porventura se curvarem aos desvarios de um demente com pretensões de ditador e o apoiarem, não estão à altura do país a que servem. Até aqui elas têm se comportado segundo o figurino. Praza aos céus que continuem assim.
Um projeto de golpe em processo
Há bem pouco tempo, o articulista Luiz Carlos Azedo, do Correio Braziliense, ao analisar a anabolização do atraso no Congresso com a política deslavada do toma-lá-dá-cá de Bolsonaro para garantir a vitória de seus candidatos à Câmara e ao Senado, escreveu que ele não pretende apenas garantir sua reeleição. “Seu projeto é inaugurar um ciclo longo de centralização do poder e resgate da tutela militar sobre a democracia brasileira, a partir do controle do Congresso”. Com autoridades do porte de Augusto Aras aventando publicamente a possibilidade de um autogolpe, é bom por as barbas de molho. Porque, por tudo o que tem feito, dito e pregado, é certo que Bolsonaro não entregará pacificamente o governo em 2022, caso seja derrotado. Atenção: essa advertência não é alarmista, mas, simplesmente, realista. Tomara que o incêndio não ocorra. Até aqui, as Forças Armadas não foram atraídas pelo canto da sereia. Mas, na dúvida, é melhor ligar o desconfiômetro e por a barba, o cabelo e o bigode de molho. Porque as consequências sempre vêm depois, como ensinava o Conselheiro Acácio.
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