Carlos Newton
No final dos anos 50, quando a televisão ainda era primitiva e estava sendo criado o primeiro sistema de vídeo-tape pelos cientistas americanos Charles Ginsberg e Ray Dolby, da empresa Ampex, que desenvolveu um suporte magnético para registrar sons e imagens simultaneamente, a emissora londrina BBC entrevistou o filósofo, matemático e historiador Bertrand Russell.
Naquela época, as reportagens ainda eram gravadas em câmara cinematográfica de 16 mm, acompanhada de um gravador tipo nagra, e o entrevistador foi altamente criativo, pois conseguiu colocar Russell diante de nuvens que passavam lentamente por trás dele.
CHEGA DE MENTIRAS – Entre outros assuntos, o inquietante e revolucionário filósofo, que se posicionava como “liberal, pacifista e socialista, mas sem radicalismos”, previu que a invenção do vídeotape seria um problema para os políticos, que poderiam ser desmentidos sempre que mentissem.
Em 1974, quando o presidente norte-americano Richard Nixon foi obrigado a renunciar, por ter mentido ao dizer que desconhecia a invasão noturna ao comitê democrata no edifício Watergate, recuperamos a profética entrevista de Bertrand Russell e a exibimos na rede nacional da TV Educativa, que o mestre Gilson Amado acabara de criar, como universidade sem paredes.
De lá para cá, foi um festival de governantes, autoridades e políticos apanhados em flagrante de mentiras, dizendo uma coisa hoje e outra amanhã, não porque tivessem evoluído a ideia, mas simplesmente por falta de caráter.
EXEMPLO DO STJ – Agora, no julgamento que anulou a quebra de sigilo de Flávio Bolsonaro, de seu cúmplice Fabricio Queiroz e de outros 90 picaretas que infestam a política, com mandatos ou não, três ministros do STJ mudaram os votos que deram habitualmente em mais de 90 por cento das questões semelhantes.
A desfaçatez dessa gente é impressionante, parece não saber que já foi inventado o vídeo-tape. E assim entra definitivamente na moda a prática de os magistrados interpretarem a lei, de acordo com a necessidade de inocentar ou libertar os criminosos envolvidos.
Na verdade, nada mais fazem do que seguir o exemplo do ministro Gilmar Dantas. Até 2016, quando a Lava Jato ainda não atingia seus amigos tucanos, era ardoroso defensor da prisão após julgamento em segundo instância. No entanto, quando os barões do PSDB passaram a ser réus, em 2019, o ilustre jurista subitamente mudou de ideia, de tese, de jurisprudência. Assim é a Justiça brasileira. E vida que segue, como dizia nosso amigo João Saldanha.
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LEIAM PARTE DO VOTO DE GILMAR MENDES EM 2016
O Supremo, em outubro de 2016, por seis votos a cinco, reafirmou o entendimento de que o parágrafo 57 do artigo 5º da Constituição, que diz que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, não impedia o início da execução da pena após condenação em segunda instância. Ou seja, como o mérito da condenação já fora julgado duas vezes, não havia mais “presunção de inocência”.
Votaram a favor os ministros Edson Fachin, Roberto Barroso, Teori Zavascki, Luiz Fux, Gilmar Mendes e Cármen Lúcia. Votaram contra e ficaram vencidos os ministros Marco Aurélio, Rosa Weber, Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski e Celso de Mello.
Nesse julgamento, Gilmar Mendes justificou brilhantemente seu entendimento de que o réu deve ser preso após condenação em segunda instância.
“Não se conhece no mundo civilizado um país que exija o trânsito em julgado. Em princípio se diz que se pode executar a prisão com decisão de segundo grau. Uma coisa é termos alguém como investigado. Outra coisa é termos alguém como denunciado, com denúncia recebida. Outra coisa é ter alguém com condenação e agora com condenação em segundo grau. Quer dizer, o sistema estabelece uma progressiva de ‘ruição’, vamos chamar assim, da ideia de presunção da inocência. E nós sabemos da nossa experiência. Amanhã um sujeito planta um processo qualquer, embargos de declaração, e aquilo passa a ser tratado como rotina a despeito… O processo ainda não transitou em julgado, vamos examinar. E daqui a pouco sobrevém uma prescrição, com todas as consequências e o quadro de impunidade. Eu acho que os presídios brasileiros vão melhorar daqui para a frente, porque se descobriu que se pode ir para a cadeia”.
“Poderá haver erros? Sempre poderá. É possível reverter? Todo dia pode ocorrer isso. Mas também não vamos esquecer que o sistema permite correção. Permite até o impedimento do início da execução da pena com a obtenção de liminar em habeas corpus. Não há nenhuma dúvida de que a realidade mostra que nós precisamos, sim, levar em conta não só o aspecto normativo, que ao meu ver legitima a compreensão da presunção de inocência nos limites aqui estabelecidos a partir do voto do relator, como também, e aqueles que o acompanharam, como também levaram em conta a própria realidade, que permite que exigir o trânsito em julgado formal, transforme o sistema num sistema de impunidade”.
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NOTA DA REDAÇÃO DO BLOG – Nos outros países, a invenção do gravador fez as autoridades tomarem cuidado com essas mudanças de opinião que podem revelar falta de caráter. Mas no Brasil, considerado o país do futuro, a Justiça insiste em permanecer na Idade Média, onde os nobres e as elites jamais eram punidos. Deitados em berço esplêndido, estamos eternamente acorrentados ao passado, sem um gravador que possa nos libertar. (C.N.)
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