Ferreira Gullar é um falsário. Pouca gente sabe e isso
nunca foi dito na imprensa, mas várias criações suas são imitações
fidedignas do trabalho de outros.
Ele mesmo admite, sem constrangimento aparente. “Eu copio muito. Já faz vinte anos que comecei“, diz o poeta, com a mão direita apoiada no seu queixo comprido.
O maranhense radicado no Rio é um impostor discreto. Suas fraudes, esmeradas, ele as compartilha apenas com os amigos mais próximos. Os muitos admiradores dos seus mais de quarenta livros não sabem dessas tramóias.
O motivo é simples: Ferreira Gullar só falsifica para consumo próprio. Copia os ídolos e guarda tudo em seu espaçoso apartamento na Rua Duvivier, em Copacabana. Os desavisados muitas vezes se espantam. Não raro, um visitante novo já entra perguntando: “Você é louco de pendurar um Mondrian aí na porta?”. “Porque eu não sou louco”, diz o poeta em sua resposta-padrão, “é que isso aí não é um Mondrian.” Foi Ferreira Gullar quem o pintou.
Há quem use a expressão “é uma arte” para todo tipo de atividade. “Fazer bem pipoca é uma arte”, “combinar o sapato com o cinto é uma arte”. Falsificar pinturas, também. A história da falsificação está apinhada de grandes talentos.
O holandês Han van Meegeren passou mais de dez anos enganando especialistas em Vermeer (1632-1675). Forjou pelo menos seis pinturas do mestre de Delft, todas consideradas autênticas pelos estudiosos do pintor. Quando finalmente foi preso, para provar que seu crime era apenas ser falsário – e não comerciante ilegal de tesouros nacionais -, van Meegeren produziu seu sétimo Vermeer diante de policiais boquiabertos.
O húngaro Elmyr de Hory foi outro craque. Mereceu até filme de Orson Welles. Era especialista em Picasso, Modigliani, Matisse, Renoir e Chagall. Até se aposentar, em Ibiza, depois de 21 anos de faina, pintou mais de mil cópias. Ferreira Gullar parou antes de contabilizar cinqüenta falsificações. De lá para cá, produz furiosamente desenhos, pinturas e colagens, mas todos originais. Gasta muito mais do seu tempo nisso do que com a poesia.
Gullar nunca se aventurou com Vermeers e Picassos. Começou a trajetória de copista imitando o famoso quadro Los Fusilamientos del 3 de Mayo (1814), de Goya. Não ficou satisfeito com o resultado. E menos satisfeito ainda parece ter ficado o Gatinho, seu gato, que usou a tela como mictório.
A partir de então, Gullar só imitou artistas modernos, como Braque, Léger e Malevich. O poeta conta que começou a fazer cópias por um motivo simples: “Sempre fui um grande admirador de pintores como Mondrian e Léger. Como nunca poderia ter um quadro deles, resolvi copiar”.
Gullar já era pintor antes mesmo de conhecer a poesia. José Ribamar Ferreira, seu nome de batismo, descobriu as artes plásticas durante uma aula no Colégio São Luís de Gonzaga, na capital maranhense. Tinha 12 anos. A professora armava na frente da classe um cavalete com uma série de gravuras e a molecada tinha de fazer redações para descrevê-las. “Um dia, quando vi aquelas gravuras grandes, me deu vontade de fazer uma delas. Comprei um caderno de desenho e lápis de cor e aí tentei imitar.”
Uma bela garota da vizinhança chamada Terezinha – e, por conseguinte, a descoberta da poesia – afastou-o das tintas por algumas décadas. Na virada dos anos 60 para os 70, clandestino, Gullar ficava muito só e resolveu se distrair com umas telas. Hoje, nas paredes e gavetas de seu apartamento, tem mais de uma centena de pinturas e desenhos de sua autoria.
“Na pintura não preciso pensar em nada. Não tenho compromissos. Saio das angústias e dos problemas. Só tenho de definir se boto vermelho ou azul, triângulo ou quadrado.”
Na poesia são outros quinhentos. “O poema nasce de um espanto, de um negócio misterioso que você não sabe de onde vem. É incontrolável. Passo meses e meses sem fazer um poema. E aí vêm quatro de uma vez.”
O poema, segundo o poeta, é o contrário do desenho. É o seu modo de “inventar a vida”. “A poesia é o momento em que sou obrigado a pensar“, diz, agitando os braços esguios. “Por mim eu não pensaria em nada. É como um poema que escrevi. ‘Ah, ser somente o presente: esta manhã, esta sala’.”
Esta sala, a sala de Gullar, é repleta de pinturas. Aqui estão originais de Milton Dacosta, Siron Franco, Rubem Valentim. Um móbile de Calder, ou melhor, de Ferreira Gullar, feito de papelão e arame, balança entre eles. Mais atrás, espremido entre duas telas de Iberê Camargo, está um Ferreira Gullar legítimo, no qual se reconhece, sem sombra de dúvida, a linguagem que o autor vem usando desde o final dos anos 80.
O estilo 100% Gullar nasceu de uma cópia, ou quase isso. “Um dia comecei a fazer uns quadros inspirados no Morandi. Não era bem cópia, era inspirado.”
No desenho, alinhou sobre uma mesa, lado a lado, um bule, garrafas e cálices. Ele gostou. “Um pouco por comodismo, pensei: se eu fizer uma estrutura e for variando, vou usar as cores que quiser e vai ficar mais fácil para mim, não vou ter de inventar um desenho toda hora.”
Do reino das cópias, o pintor Ferreira Gullar gosta particularmente de seus dois Léger. Ele acende a luz do lavabo, junto à sala, e aponta: “Veja este aqui. O Milton Dacosta veio uma vez em casa e disse: ‘Uh, rapaz, legal. Quer trocar comigo?‘”. Gullar não trocou.
As cópias ele guarda para si. Os originais, ele os presenteia. No dia 10 de setembro, seu aniversário, sorteou entre os amigos uma de suas colagens, técnica que vem explorando nos últimos tempos. Ele mesmo organizou todo o sorteio. “Faço os papeizinhos, boto 1, 2, 3, 4. E sorteio. Por acaso, nesse dia quem ganhou foi meu irmão, o Nilton. Ninguém pediu cpi, foi tudo feito às claras.”
Ele coleciona boas histórias dessa fase das colagens. Uma delas contou com a participação do Gatinho. Estava tudo pronto sobre a mesa.
Gullar havia ajeitado os papéis coloridos da maneira como queria colá-los na cartolina. Quando levantou para beber água, Gatinho, o mesmo que liquidara o seu Goya, pulou sobre o arranjo e esparramou os papéis.
O dono do bicho gostou tanto do novo arranjo que colou exatamente assim. Gatinho ficou dezesseis anos com Ferreira Gullar. Morreu meses atrás, para grande melancolia do poeta.
Gullar manteve parcerias artísticas com Mondrian, Calder, Malevich, Léger e Braque. Na sua pinacoteca, nenhuma delas lhe dá mais orgulho do que a do gato Gatinho. (da revista Piauí)
Ele mesmo admite, sem constrangimento aparente. “Eu copio muito. Já faz vinte anos que comecei“, diz o poeta, com a mão direita apoiada no seu queixo comprido.
O maranhense radicado no Rio é um impostor discreto. Suas fraudes, esmeradas, ele as compartilha apenas com os amigos mais próximos. Os muitos admiradores dos seus mais de quarenta livros não sabem dessas tramóias.
O motivo é simples: Ferreira Gullar só falsifica para consumo próprio. Copia os ídolos e guarda tudo em seu espaçoso apartamento na Rua Duvivier, em Copacabana. Os desavisados muitas vezes se espantam. Não raro, um visitante novo já entra perguntando: “Você é louco de pendurar um Mondrian aí na porta?”. “Porque eu não sou louco”, diz o poeta em sua resposta-padrão, “é que isso aí não é um Mondrian.” Foi Ferreira Gullar quem o pintou.
Há quem use a expressão “é uma arte” para todo tipo de atividade. “Fazer bem pipoca é uma arte”, “combinar o sapato com o cinto é uma arte”. Falsificar pinturas, também. A história da falsificação está apinhada de grandes talentos.
O holandês Han van Meegeren passou mais de dez anos enganando especialistas em Vermeer (1632-1675). Forjou pelo menos seis pinturas do mestre de Delft, todas consideradas autênticas pelos estudiosos do pintor. Quando finalmente foi preso, para provar que seu crime era apenas ser falsário – e não comerciante ilegal de tesouros nacionais -, van Meegeren produziu seu sétimo Vermeer diante de policiais boquiabertos.
O húngaro Elmyr de Hory foi outro craque. Mereceu até filme de Orson Welles. Era especialista em Picasso, Modigliani, Matisse, Renoir e Chagall. Até se aposentar, em Ibiza, depois de 21 anos de faina, pintou mais de mil cópias. Ferreira Gullar parou antes de contabilizar cinqüenta falsificações. De lá para cá, produz furiosamente desenhos, pinturas e colagens, mas todos originais. Gasta muito mais do seu tempo nisso do que com a poesia.
Gullar nunca se aventurou com Vermeers e Picassos. Começou a trajetória de copista imitando o famoso quadro Los Fusilamientos del 3 de Mayo (1814), de Goya. Não ficou satisfeito com o resultado. E menos satisfeito ainda parece ter ficado o Gatinho, seu gato, que usou a tela como mictório.
A partir de então, Gullar só imitou artistas modernos, como Braque, Léger e Malevich. O poeta conta que começou a fazer cópias por um motivo simples: “Sempre fui um grande admirador de pintores como Mondrian e Léger. Como nunca poderia ter um quadro deles, resolvi copiar”.
Gullar já era pintor antes mesmo de conhecer a poesia. José Ribamar Ferreira, seu nome de batismo, descobriu as artes plásticas durante uma aula no Colégio São Luís de Gonzaga, na capital maranhense. Tinha 12 anos. A professora armava na frente da classe um cavalete com uma série de gravuras e a molecada tinha de fazer redações para descrevê-las. “Um dia, quando vi aquelas gravuras grandes, me deu vontade de fazer uma delas. Comprei um caderno de desenho e lápis de cor e aí tentei imitar.”
Uma bela garota da vizinhança chamada Terezinha – e, por conseguinte, a descoberta da poesia – afastou-o das tintas por algumas décadas. Na virada dos anos 60 para os 70, clandestino, Gullar ficava muito só e resolveu se distrair com umas telas. Hoje, nas paredes e gavetas de seu apartamento, tem mais de uma centena de pinturas e desenhos de sua autoria.
“Na pintura não preciso pensar em nada. Não tenho compromissos. Saio das angústias e dos problemas. Só tenho de definir se boto vermelho ou azul, triângulo ou quadrado.”
Na poesia são outros quinhentos. “O poema nasce de um espanto, de um negócio misterioso que você não sabe de onde vem. É incontrolável. Passo meses e meses sem fazer um poema. E aí vêm quatro de uma vez.”
O poema, segundo o poeta, é o contrário do desenho. É o seu modo de “inventar a vida”. “A poesia é o momento em que sou obrigado a pensar“, diz, agitando os braços esguios. “Por mim eu não pensaria em nada. É como um poema que escrevi. ‘Ah, ser somente o presente: esta manhã, esta sala’.”
Esta sala, a sala de Gullar, é repleta de pinturas. Aqui estão originais de Milton Dacosta, Siron Franco, Rubem Valentim. Um móbile de Calder, ou melhor, de Ferreira Gullar, feito de papelão e arame, balança entre eles. Mais atrás, espremido entre duas telas de Iberê Camargo, está um Ferreira Gullar legítimo, no qual se reconhece, sem sombra de dúvida, a linguagem que o autor vem usando desde o final dos anos 80.
O estilo 100% Gullar nasceu de uma cópia, ou quase isso. “Um dia comecei a fazer uns quadros inspirados no Morandi. Não era bem cópia, era inspirado.”
No desenho, alinhou sobre uma mesa, lado a lado, um bule, garrafas e cálices. Ele gostou. “Um pouco por comodismo, pensei: se eu fizer uma estrutura e for variando, vou usar as cores que quiser e vai ficar mais fácil para mim, não vou ter de inventar um desenho toda hora.”
Do reino das cópias, o pintor Ferreira Gullar gosta particularmente de seus dois Léger. Ele acende a luz do lavabo, junto à sala, e aponta: “Veja este aqui. O Milton Dacosta veio uma vez em casa e disse: ‘Uh, rapaz, legal. Quer trocar comigo?‘”. Gullar não trocou.
As cópias ele guarda para si. Os originais, ele os presenteia. No dia 10 de setembro, seu aniversário, sorteou entre os amigos uma de suas colagens, técnica que vem explorando nos últimos tempos. Ele mesmo organizou todo o sorteio. “Faço os papeizinhos, boto 1, 2, 3, 4. E sorteio. Por acaso, nesse dia quem ganhou foi meu irmão, o Nilton. Ninguém pediu cpi, foi tudo feito às claras.”
Ele coleciona boas histórias dessa fase das colagens. Uma delas contou com a participação do Gatinho. Estava tudo pronto sobre a mesa.
Gullar havia ajeitado os papéis coloridos da maneira como queria colá-los na cartolina. Quando levantou para beber água, Gatinho, o mesmo que liquidara o seu Goya, pulou sobre o arranjo e esparramou os papéis.
O dono do bicho gostou tanto do novo arranjo que colou exatamente assim. Gatinho ficou dezesseis anos com Ferreira Gullar. Morreu meses atrás, para grande melancolia do poeta.
Gullar manteve parcerias artísticas com Mondrian, Calder, Malevich, Léger e Braque. Na sua pinacoteca, nenhuma delas lhe dá mais orgulho do que a do gato Gatinho. (da revista Piauí)
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