Bruna Frascolla
Gazeta do Povo
Muito se fala contra “a corrupção” assim, em bloco, como se fosse uma coisa só e igualmente ruim. De minha parte, eu não arrisco sequer dizer que a corrupção seja uma coisa ruim em si mesma. Quando as leis são infames, a corrupção pode ser uma coisa boa. Aponto um exemplo histórico: durante a Era Vargas, a imigração foi muito dificultada; e o Itamaraty criou circulares secretas que mandavam negar vistos a judeus.
De uma forma inquestionavelmente virtuosa, Aracy Guimarães Rosa saiu concedendo visto a judeus. Trata-se da desobediência civil, a inimiga número um de regimes totalitários. De maneira mais nebulosa, porém, burocratas no Sul venderam sua leniência para um esquema de entrada ilegal de judeus pela fronteira. Ainda que tenham feito isso por dinheiro, temos aí um caso em que a corrupção salvou vidas.
PONTOS DE VISTA – No caso brasileiro atual, creio que haja uma sensibilidade à corrupção diferente entre quem usa de serviços públicos e quem não usa. A classe média fala mais da corrupção em bloco. Daí fazer-se um estardalhaço com as acusações de rachadinhas no gabinete de Flávio Bolsonaro, crente que haverá o mesmo apelo popular que as denúncias da roubalheira do PT.
Já o pobre que usa serviços públicos tende a se ressentir muito de dois tipos precisos de corrupção: desvio da Saúde e roubo de merenda escolar. Quanto às rachadinhas, às vezes ele próprio é um beneficiário do esquema: presta seus serviços de cabo eleitoral a um dado político e, depois da eleição, existe um butim chamado “verba de gabinete” a ser partilhado entre os vitoriosos.
Se o político fizer ao cabo a promessa de uma renda estável no pós-eleição e resolver gastar o dinheiro da verba com assessores formados ou técnicos, aí sim passará por desonesto.
CONCENTRAÇÃO – Creio que isso seja um problema da Constituinte, que concentrou os recursos em Brasília ao tempo que criou uma porção de pagamento discricionário para vereadores e deputados. E creio também que só com o caso Flávio Bolsonaro a tradicional rachadinha tenha ido para o pelourinho.
Como eu sei que os políticos petistas também sabem disso, creio que o escarcéu com a rachadinha tenha sido, da parte dos petistas, para o consumo da classe média. E creio que, da parte dos jornalistas, se explique em parte por estarem na bolha da classe média e em parte por causa do antibolsonarismo.
O que vejo de mais relevante no caso Flávio é a proximidade com milicianos; não a rachadinha, que é feijão com arroz, e vai continuar sendo enquanto gabinete de político tiver um montão de verba discricionária.
CONDENAÇÃO GENÉRICA – Um clássico político brasileiro é o rouba-mas-faz. O político que alcança a reputação de rouba-mas-faz costuma ser bem-sucedido eleitoralmente, já que a ênfase fica no faz. Dizemos “rouba, mas faz”, em vez de “faz, mas rouba”, porque a suposição generalizada é a de que políticos roubem.
E uma vez que você dependa de serviços públicos, ou simplesmente queira ver a sua cidade mais bonita e perder menos tempo no trânsito, na certa saberá logo diferenciar o político rouba-mas-faz do político que, como todos os outros, rouba, e ainda por cima deixa a cidade toda avacalhada.
Não acho que o voto, sozinho, seja capaz de mudar isso. Acho que esse tipo de cenário só é possível por causa da ineficácia da polícia civil e da justiça, já que a impunidade é o maior fomento de qualquer tipo de criminoso.
CASO DO MENSALÃO – Durante a crise do Mensalão, o PT se apropriou desse pensamento pragmático com grande sucesso. “Todos os políticos brasileiros roubam desde 1500”, dizia-se, de modo que o PT estava nivelado com os demais nessa seara. Por outro lado, com o PT a fome acabou e os pobres estavam viajando de avião, aquela coisa toda.
Aí a versão oficial passou a ser que o PT cometeu erros, mas esses erros são indistintos dos cometidos pela política geral, que seus atos virtuosíssimos compensam a coisa. O discurso colou porque, de fato, o PSDB partia para o discurso anticorrupção genérico que é adotado até hoje ao se tratar do assunto.
O brasileiro médio não bota a mão no fogo por político nenhum; ainda assim, os tucanos pretendiam se colocar como novo partido da ética quando já eram governo nos dois estados mais populosos do Brasil, já tinham passado pela presidência e já estavam maculados por suspeitas sérias de corrupção. Ao mesmo tempo, do lado tucano não faltava quem falasse contra o Bolsa Família, chamando de esmola, quando o programa ainda era novidade.
Nessa discussão burra e moralista, omitiu-se o fundamental: a compra do Legislativo pelo Executivo destrói o equilíbrio do poder e promove a sua concentração. Ora, não há democracia que resista à centralização do poder na mão de um só.
###
NOTA DA REDAÇÃO DO BLOG – Muito importante e verdadeiro este artigo sobre corrupção, enviado por Mário Assis Causanilhas, sempre atento às peculiaridades democráticas. A autora, Bruna Frascolla, tem doutorado em Filosofia pela UFBa e lançou o livro “As ideias e o terror” (República AF, 2020). Como o texto do artigo era um pouco extenso, publicaremos a segunda parte amanhã. (C.N.)
Nenhum comentário:
Postar um comentário